Passados 6 meses desde a sua eleição para Presidente do Colégio de Especialidade de Análises Clínicas e Genética Humana da Ordem dos Farmacêuticos, quisemos saber mais sobre o percurso de Leonor Estêvão Correia, sobre a importância das Análises Clínicas, e quais os planos para o seu mandato.

 

Faculdade de Farmácia – Por que se tornou farmacêutica?
Leonor Correia – Porque sempre achei que o mais importante na vida é a saúde e a sua preservação. Por isso mesmo, a minha primeira opção foi a faculdade de medicina. Ao mesmo tempo que entrei na faculdade de medicina estive, também, como voluntária, no serviço de oncologia pediátrica do Hospital D. Estefânia, onde ajudei a tratar e convivi com crianças com leucemia. É uma realidade muito difícil. Depois disso, pensei que gostaria de ter uma profissão ligada ao diagnóstico e à terapêutica, sem ter que conviver com o sofrimento do doente, que não me deixava indiferente.

FFUL – A carreira de docente já fazia parte dos seus planos?
LC – Não, de todo. Simplesmente, foi acontecendo. Quando acabei o 3º ano da FFUL fui convidada, pelo Prof. Carlos Silveira, para integrar o Centro de Metabolismos e Genética, recém-formado na FFUL, como aluna-tirocinante e, aí, iniciei a minha experiência na área da investigação. Quando terminei o curso abri uma farmácia, pelo que tive oportunidade de iniciar uma nova atividade e uma nova experiência e, também, pude contactar com a terapêutica e com o público, que são experiências muito enriquecedoras e importantes na vida de um farmacêutico. Mais tarde, quando abriu concurso para Assistente na FFUL, na área da bioquímica, concorri e fui selecionada para a disciplina de Hematologia, que leciono até hoje. Na altura, achei que seria mais uma experiência e que estaria na faculdade de passagem.

 FFUL – Acabou não ser apenas uma passagem.
LC – Pois não. Acabei por me dedicar totalmente à hematologia e aos alunos, por perceber que ensinar era o que eu mais gostava de fazer; por poder transmitir aos jovens as minhas ideias e a minha forma de trabalhar e por lhes  poder incutir o sentido de responsabilidade e a noção de que, do seu trabalho, depende um diagnóstico correto, a instituição de uma terapêutica adequada e, naturalmente, a vida do doente. Ao mesmo tempo que lecionava fui sempre fazendo investigação, várias formações, cursos e estágios nacionais e internacionais e, também, o título de especialista em análises clínicas pela Ordem dos Farmacêuticos. Bem mais tarde obtive, também, o título de especialista em Genética Humana. Como gosto de ver a teoria aplicada à prática, para mim é assim que faz sentido, acabei por adquirir parte de um laboratório de análises clínicas e, assim sendo, passei a conhecer de perto a realidade e as dificuldades desta saída profissional, que é tão importante no nosso curso.

FFUL – E continuou a dar aulas e a fazer investigação?
LC – Sim. O conhecimento da realidade laboral foi uma grande mais-valia. Permitiu-me uma adaptação dos programas das disciplinas que leciono, sempre com grande interligação e valorização das componentes clínicas e laboratoriais, de forma a torná-las úteis aos futuros profissionais, dada a grande relevância da hematologia no diagnóstico laboratorial e nas análises clínicas. Com a evolução e as exigências da carreira académica acabei por fazer provas de aptidão pedagógica e de capacidade científica na FFUL e depois voltar às faculdades de medicina, primeiro em Madrid e depois em Paris, onde fiz doutoramento em imunologia. Também em Paris, desenvolvi alguma investigação, em pós-doutoramento, e fiz vários cursos e estágios e nas diferentes áreas da hematologia.

 FFUL – Além de docente e Presidente do Colégio de Especialidade em Análises Clínicas na Ordem dos Farmacêuticos, também vive de perto a realidade do mercado de trabalho. Em que áreas há maior necessidade de farmacêuticos?
LC – Atualmente, na área das análises clínicas, há uma grande necessidade de farmacêuticos, situação que se tem vindo a agravar ao longo do tempo. Os laboratórios estão a recorrer a outros profissionais, tais como médicos, biólogos, bioquímicos, licenciados em análises clínicas e saúde pública, entre outros, para tentar colmatar esta falta. Neste momento, os jovens farmacêuticos têm a grande oportunidade de entrar em residência farmacêutica, que lhes permitirá uma boa formação e uma elevada taxa de empregabilidade, tanto no setor público como no privado. Também na farmácia comunitária há falta de farmacêuticos neste momento. Isso está bem patente na grande quantidade anúncios que existem, solicitando estes profissionais.

FFUL – Que mudanças sente que estão a ocorrer no mercado de trabalho?
LC – Muitas.  Até o conceito de saúde mudou. Estamos em época de “One Health” segundo a OMS, ou seja, uma visão holística da saúde. Estamos em período de grande evolução tecnológica que, naturalmente, se reflete nas técnicas de diagnóstico, na grande inovação terapêutica e na descoberta de novos biomarcadores de diagnóstico, prognóstico e seguimento terapêutico, que virão revolucionar a medicina do futuro, com o aumento do tempo e da qualidade de vida do doente. Obviamente que estas mudanças, que evoluem no sentido de uma medicina de precisão e personalizada, centrada no doente, vão exigir um conhecimento cada vez mais profundo, especializado e diferenciado, por parte dos profissionais de saúde, que obrigará a uma atualização contínua dos seus conhecimentos, a fim de saberem colocar ao dispor dos doentes as melhores opções diagnósticas e terapêuticas disponíveis. Há que pensar numa saúde integrada, onde as influências animais e ambientais não poderão ser negligenciadas.

FFUL – A aposta em cursos de especialização é uma vantagem para os farmacêuticos?
LC – Claro que sim. Para os farmacêuticos e não só. O saber, a especialização e a atualização são sempre uma grande mais valia para todos aqueles que frequentam os cursos e para os doentes que eles servem. Eu já fazia cursos de pós-graduação e atualização em hematologia desde 2008. Nesse ano ocorreu a revisão da classificação da OMS para os tumores do tecido hematopoiético e linfático. O diagnóstico passou a ser mais exigente e a englobar novos parâmetros e novas tecnologias, nomeadamente no âmbito da genética e da biologia molecular, que muito contribuíram para os avanços e progressos hoje verificados. Foi muito difícil para os profissionais a transição de uma classificação essencialmente morfológica para esta, muito mais complexa. Nessa altura, uma vez que existia, e existe, falta de formação especializada, iniciei, em colaboração com a Dra. Margarida Silveira do IPO de Lisboa, um conjunto de formações pós-graduadas para ajudar a colmatar essa falta. Esta área das análises clínicas está em constante evolução, por isso é necessário ir sempre fazendo atualizações.

FFUL – De momento tem feito cursos de análises clínicas em outras áreas que não especificamente de hematologia. Porquê esta alteração?
LC – Ao assumir a presidência do Colégio de Especialidade em Análises Clínicas e Genética Humana (CEACGH) da Ordem dos Farmacêuticos, pus em prática o programa que tinha anunciado na candidatura para desenvolver um vasto conjunto de ações que visam a valorização e o aumento das competências dos farmacêuticos destas áreas. Neste sentido foram elaborados, pelos membros do CEACGH da OF, com a colaboração de vários docentes da FFUL e de profissionais de diferentes instituições públicas e privadas, vários cursos de pós-graduação e atualização em análises clínicas e genética humana, que visam uma aproximação da ciência e da academia à realidade profissional e empresarial. Estas formações englobam as diferentes vertentes das análises clínicas e da genética humana, são destinadas aos profissionais do diagnóstico e são creditadas pela Ordem dos Farmacêuticos, pelo que contribuem para a formação e, também, para a atualização de conhecimentos dos profissionais em atividade e para a revalidação das carteiras profissionais. O primeiro curso desta série, de microbiologia, teve lugar em junho, correu muito bem e teve uma grande afluência. Neste momento, estão já disponíveis mais 7 cursos (Bioquímica, Hematologia, Microbiologia, Hemostase, Citometria, Imunologia e Genética), que terão lugar na FFUL, até novembro deste ano.

FFUL – A área das análises é uma das possibilidades de saída profissional dos farmacêuticos?
LC – Claro que sim. Já foi a segunda saída profissional e houve tempos em que a maior parte dos laboratórios de análises clínicas, em Portugal, eram propriedade de farmacêuticos. Neste momento, a maioria dos especialistas farmacêuticos no ativo está em faixas etárias acima dos 50 anos e tem havido um contínuo decréscimo do número anual de novos farmacêuticos especialistas. No entanto, as qualificações e competências diferenciadas dos farmacêuticos, que aliam técnicas laboratoriais, atividades clínicas, genética, biologia molecular e farmacologia, entre outras, fazem deles uma grande mais valia para a atividade. Deverá ter-se em conta que a medicina de precisão e personalizada e a monitorização do uso dos medicamentos inovadores precisa dos marcadores que as análises clínicas e a genética humana proporcionam.

FFUL – Qual o balanço que faz destes 6 meses na OF?
LC – O balanço é muito positivo, mas tem sido um período muito trabalhoso. Nunca esteve nos meus planos assumir funções desta natureza, mas como gosto de desafios, acabei por aceitar mais este, porque achei que, nesta fase, poderia colocar ao serviço da classe toda a experiência adquirida ao longo de uma vida profissional bastante preenchida. Farei os possíveis para ir ao encontro das expetativas dos colegas que confiaram em nós para estas funções. Colaborámos no fórum de Análises Clínicas, organizado pela OF, para auscultação da classe e para se apurarem as dificuldades existentes e tentar trabalhar, em conjunto, para encontrar as soluções mais adequadas e ajudar na revitalização das análises clínicas para o setor farmacêutico. No CEACGH todos os elementos são bastante ativos e estão muito motivados para trabalhar por esta causa, que é a nossa causa.

 

Leonor Estevão Correia – “O MICF tem uma grande abrangência e a formação nele obtida abre portas para diferentes atividades, entre elas as relacionadas com as diferentes áreas do diagnóstico.”

 

FFUL – Quais os projetos pensados pelo Colégio de Análises Clínicas para esta especialidade?
LC – São vários. Há muitas atividades a decorrer ao mesmo tempo: Estamos a tomar conhecimento da situação atual e a emitir todos os pareceres relacionados com a atividade que nos são solicitados, nomeadamente no que se refere a situações atuais e a projetos previstos para os próximos anos; fizemos também a revisão das normas e o programa para atribuição dos títulos de especialista em análises clínicas e em genética humana, que se encontram atualmente em consulta pública. Ainda este ano, vamos fazer os exames nacionais para atribuição do título de especialista em análises clínicas. Provavelmente atribuiremos algumas equivalências. Ao longo deste mandato iremos ainda organizar as Jornadas Anuais das Análises Clínicas, no início do próximo ano; lançaremos programas de formação básica e de formação avançada, descentralizados e em colaboração com as diferentes secções regionais da OF; pensamos instituir novas competências em áreas como a microbiologia, a hematologia (hemato-oncologia e hemostase) e a imunohematologia/ imunohemoterapia, e lançar uma plataforma de ensino de hematologia à distância para os farmacêuticos dos países lusófonos. Continuaremos a fazer sessões de esclarecimento e formações pedagógicas, dirigidas aos jovens, para os informar e motivar para a escolha desta área tão promissora. A colaboração com a FFUL também irá continuar, com a disponibilização de cursos de pós-graduação e atualização em análises clínicas e genética humana e, também, na proposta de novas disciplinas de opção, em áreas importantes para o farmacêutico explorar. Para além das atividades inerentes ao Colégio também faço parte do CQA (Conselho para a Qualificação e Admissão) da OF e do grupo de trabalho que foi constituído para estabelecer as condições de acesso aos dados clínicos dos doentes pelos farmacêuticos. Este acesso, será uma grande mais valia para os farmacêuticos e permitirá um maior e mais qualificado espetro de ação das diferentes atividades farmacêuticas que dele necessitam.

FFUL – Quais serão as condições de acesso a esses dados clínicos? O acesso a eles vai melhorar o papel que o farmacêutico pode ter na terapêutica do doente?
LC – As condições de acesso vão ser propostas pelo grupo de trabalho, neste momento liderado pelo Prof. Félix Carvalho, que foi constituído pela OF para esse efeito, e ainda não foram definidas. Este acesso será muito importante no hospital e, também, na farmácia comunitária para que, mediante consentimento do utente, o farmacêutico possa intervir de forma mais correta e aprofundada aquando da prescrição e, também, no seguimento da terapêutica do doente. No laboratório de análises clínicas também é fundamental este acesso, para uma melhor interpretação dos resultados obtidos, para o seu enquadramento no diagnóstico do doente, e para que o farmacêutico possa ter um papel mais interventivo, podendo sugerir biomarcadores que ajudem a precisar e esclarecer o diagnóstico e, também, a definir o prognóstico do doente.

FFUL – Estamos agora a iniciar um novo ano letivo. Que conselho daria a quem está agora a começar o Mestrado Integrado em Ciências Farmacêuticas (MICF)?
LC – Que invistam nas análises clínicas e na genética humana, que se informem sobre as enormes possibilidades de trabalho e de inovação que estas áreas lhes proporcionam, e que estejam a par da elevada taxa de empregabilidade que existe, atualmente, para esta saída profissional. Podem procurar laboratórios clínicos privados, que acolhem jovens estudantes do MICF, para poderem tomar conhecimento desta realidade e dos inúmeros desafios que ela engloba. O MICF tem uma grande abrangência e a formação nele obtida abre portas para diferentes atividades, entre elas as relacionadas com as diferentes áreas do diagnóstico. Os farmacêuticos analistas clínicos deverão acompanhar a evolução exponencial da tecnologia, adquirir e desenvolver novas competências, que a formação pré-graduada não assegura, e que o mercado de trabalho precisa, procura, reconhece e valoriza. Deve haver um desenvolvimento profissional contínuo, que deve ser valorizado pelo mercado de trabalho e reconhecido pelos utentes e pela Tutela.