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Farmácia Popular” é uma exposição que nos apresenta uma recriação da “Farmácia Popular”, cujo recheio foi doado à FFUL pelo antigo proprietário e diretor técnico José Cabrita, Professor Catedrático aposentado da FFUL.

Dos bens doados, através da assinatura de um contrato de doação a 5 de novembro de 2020 entre o Prof. José Cabrita e a FFUL, destacam-se mobiliário, vidros, louças, equipamentos, placas informativas, rótulos, material ligado às atividades médicas e ainda documentação impressa, como livros de registo, dicionário de sinónimos e farmacopeias.

Organizada pela equipa da Biblioteca em articulação com José Cabrita, a exposição tem como principal objetivo fomentar o interesse pela componente histórica desta farmácia, datada de meados do séc. XX.

A exposição tem carácter permanente e está patente ao público na Biblioteca, fazendo parte do seu acervo, no âmbito do projeto Memória & Património da FFUL.

A Farmácia de Sabóia em meados do Século XX (décadas de 40 a 60)

Por José Cabrita (filho)
Sabóia, 15 de Dezembro de 2020

 

A Aldeia

Sabóia é uma das freguesias mais antigas do concelho de Odemira. Situa-se no interior sul daquele concelho, nos contrafortes da serra de Monchique, em terras do Alto Mira. Em meados do século XX era uma das mais importantes freguesias rurais do concelho com uma população média superior a 4.500 habitantes entre 1940 e 1960.

Embora tipicamente alentejana, a freguesia de Sabóia não pertence ao Alentejo latifundiário e da grande planície. Ao contrário, predominam aqui as herdades de pequena e média dimensão, as altas serranias e corgos profundos onde serpenteia o rio Mira e suas ribeiras.

Naquela época a maioria dos seus habitantes trabalhava a terra como assalariados rurais, pequenos proprietários e rendeiros, ou eram artesãos, carpinteiros, ferreiros e outros artífices que produziam os utensílios e ferramentas indispensáveis à vida daquela pequena comunidade rural. No entanto, à sua dimensão Sabóia, tinha atividade comercial considerável, com dezenas de lojas, mercearias e tabernas. Existiam ainda algumas fábricas artesanais de moagem, cerâmica e cozimento de cortiça que empregavam algumas dezenas de trabalhadores.

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A partir da década sessenta a estrutura da aldeia tipicamente agrária alterou-se em consequência da construção da barragem de Santa Clara, do aumento da emigração para o estrangeiro e para as colónias, bem como das migrações para o Algarve, originando um progressivo abandono dos campos e da atividade agrícola.

Sabóia dispunha na década de 40 e 50 algumas estruturas ou serviços muito pouco comuns em aldeias da sua dimensão, muito provavelmente devido à influência política de alguns dos seus habitantes mais ilustres.

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Entre elas salientamos: a estação ferroviária a funcionar desde o século XIX e onde paravam todos os comboios, de mercadorias e de passageiros, assegurando a ligação ao Algarve ou a Lisboa; a Casa do Povo, inaugurada em 1934, sendo a primeira criada no concelho de Odemira e uma das mais antigas do distrito de Beja e que dispunha de uma sala de espetáculos e de consultório médico apetrechado com um aparelho de RX; um Dispensário da Associação Nacional dos Tuberculosos (ANT) edificado em 1932, um dos 4 do Distrito de Beja e do total de 83 existentes em todo o país; um posto da Guarda Nacional Republicana; um jornal quinzenário regionalista, o “Ecos da Serra” editado desde 1925 e mantido, com algumas interrupções até à década de quarenta.

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Por outro lado, as características orográficas da região e a deficiente rede viária tornavam Sabóia uma aldeia muito isolada. Não existia estrada alcatroada nem transporte público para a sede do concelho e no inverno, em tempo de chuva, as cheias das ribeiras impediam o acesso a muitos pequenos povoados das redondezas e o confinamento dos seus habitantes durante alguns dias.

Até ao final da década de 60 a rede elétrica e o saneamento básico ainda não tinham chegado à aldeia. A maioria da população vivia em habitações exíguas, sem conforto nem qualquer estrutura de esgoto ou de canalização de água.

A água dos poços e fontes da região era muito salobra e imprópria para consumo e a “água de beber” era distribuída por aguadeiros que a transportaram em pipas desde a Fonte do Vale Bispo, a cerca de 15 quilómetros, em carros puxados por mulas durante várias horas.

Assim, em Sabóia, como na generalidade das aldeias alentejanas da época, as condições sanitárias e socioeconómicas eram muito precárias o que, consequentemente, criava condições desfavoráveis para a saúde e o bem-estar dos seus habitantes, pelo que era frequente a ocorrência de doenças entéricas, zoonoses e sobretudo de tuberculose.

A assistência sanitária pública era muito deficiente e o contributo do Estado era exercido quase exclusivamente através da Casa do Povo que pagava, através de uma avença ao médico e a uma enfermeira, a assistência médica e custeava uma parte dos medicamentos dos seus associados.

Na época apenas os lavradores e os trabalhadores rurais poderiam ser sócios da Casa do Povo, e, assim parte da população não era abrangida pela Previdência, por não estar ligada à atividade agrícola. Além destes, também muitos trabalhadores rurais, sócios da Casa do Povo, por não terem meios para pagar regularmente as suas quotizações, ficavam privados do acesso às consultas e da comparticipação nos medicamentos.

Assim, para a maioria da população e principalmente para os mais carenciados, a assistência na doença a que tinham acesso era a que era prestada de forma solidária pelo médico, pela enfermeira e pela Farmácia. As consultas e os tratamentos eram pagos quando fosse possível e na maioria das vezes em géneros, os ovos da capoeira, os peixes da ribeira, as perdizes ou lebres de um caçada bem-sucedida, ou quando havia algum dinheiro disponível, geralmente depois das mondas e das ceifas. Havia pobreza, mas também honradez e as dívidas do rol de medicamentos, de consultas e de curativos acabavam sempre, ou quase sempre, por ser saldadas.

Nas décadas em análise em Sabóia houve sempre um médico residente, uma enfermeira dedicada e uma Farmácia com porta aberta todos os dias. Os saboianos desses tempos recordarão os médicos Dr. Damas Mora, Dr. Pratas, Dr. Amaral, Dr. Tito e Dr. Nata, a enfermeira D. Rosa e os ajudantes de Farmácia, o Sr. Joaquim Talhinhas e o Sr. José Cabrita.

A Farmácia

A primeira Farmácia em Sabóia, a Farmácia Gião, foi instalada em 1932 devido ao esforço e influência do Dr. Damas Mora. O primeiro alvará foi concedido a uma sociedade de Santiago do Cacém, sendo a direção técnica assegurada pela Dra. Francisca da Conceição Gião, esposa do proprietário. Cinco anos depois, em 1937, foi adquirida por António Dias Franco que a manteve até à sua morte, em 1952, com a designação de Farmácia Franco. Foi então vendida ao ajudante técnico Joaquim Talhinhas que trabalhava naquela farmácia desde 1935 como Ajudante de Farmácia. A partir de então, e até hoje, a Farmácia passou a chamar-se Farmácia Popular.

Em 1958 a Farmácia foi vendida a José Cabrita, Ajudante Técnico de Farmácia, que já teria mais de 30 anos de profissão, em Farmácias de Lagos, na Farmácia Central do Exército em Lisboa e no Hospital Militar do Algarve. Instalou-se em Sabóia com a família e ali dirigiu a Farmácia Popular até à sua morte, em 2001.

Durante as décadas de quarenta a sessenta a assistência farmacêutica em Sabóia, tal como em todas as freguesias do concelho de Odemira incluindo as da vila, foi sempre assegurada por ajudantes técnicos de farmácia, homens e mulheres que, não tendo passado pelos bancos da Universidade, adquiriram os conhecimentos necessários para produzir e dispensar os medicamentos e prestar outros cuidados de saúde, com os ensinamentos dos boticários mais antigos com quem se iniciaram na profissão e os aperfeiçoaram com a prática do seu dia-a-dia na farmácia e no contacto com médicos, enfermeiros e com os próprios doentes. Na verdade, foram aqueles ajudantes técnicos de farmácia que asseguraram o acesso ao medicamento às populações das aldeias e das pequenas vilas de todo o país até ao final da década de sessenta.

A Farmácia de Sabóia, desde o primeiro dia do seu funcionamento, em 1932, até meados da década de noventa esteve sempre localizada no nº 13 da Rua 5 de Outubro, uma casa térrea com uma porta e duas janelas e com duas argolas onde se prendiam cavalos e burros que transportavam os utentes da botica. Na década de sessenta, período a que se refere este testemunho, a Farmácia era constituída por uma sala de atendimento ao público, o laboratório que comunicava com a residência do proprietário e uma pequena casa de banho.

A sala de atendimento ao público dispunha de dois grandes armários com portas de vidro, de um armário pequeno, de um balcão e de uma secretária, todos em madeira de castanho. Nos armários grandes dispunham-se as “especialidades farmacêuticas”, os medicamentos de produção industrial que chegavam duas vezes por semana à estação ferroviária em grandes cestos de vime. Estes medicamentos, que eram raros até ao início da década de cinquenta, forma progressivamente substituindo na prescrição médica os que eram produzidos segundo a arte no laboratório da farmácia, designados por manipulados. Nas prateleiras do armário pequeno estavam arrumadas as Farmacopeias, os Formulários e outros livros que orientavam a produção dos manipulados, a realização de análises químico-biológicas ou que apoiavam intervenções em saúde. Aqui residiam também os registos do receituário dispensado e dos psicotrópicos, assim como outra escrita da Farmácia.

O balcão no centro da farmácia tinha um tampo de mármore sobre o qual se encontrava uma antiga e decorativa balança de precisão e era o local da dispensa de medicamentos e atendimento aos doentes. Nas suas prateleiras, visíveis através das portas de vidro, dispunham-se os raros produtos de higiene ou de cosmética de produção industrial.

Nesta sala havia ainda um pequeno espaço para espera e para a tertúlia, com quatro cadeiras, um cadeirão de braços e uma mesinha baixa sempre com o jornal, “o Século“ ou o “Diário de Notícias”, que chegava diariamente no comboio Rápido de Lisboa.

O Laboratório estava equipado com quatro armários grandes e algumas prateleiras encostados às paredes enquanto no centro do compartimento estava um grande balcão com tampo de mármore. Num dos cantos da sala estava um alambique para produzir os destilados e uma autoclave para esterilizar utensílios e material de penso.

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Nos armários arrumavam-se centenas de frascos de vidro castanho de diferentes dimensões contendo os princípios ativos necessários à produção dos medicamentos manipulados. Nas prateleiras exteriores eram arrumados boiões com pomadas e unguentos e grandes latas contendo plantas medicinais colhidas nos campos da aldeia.

Nas gavetas do balcão eram guardadas as espátulas, os tamises, os almofarizes, as provetas, os funis e outros instrumentos necessários à manipulação, assim como pequenas caixas, de cartão e de plástico, e frascos com as rolhas correspondentes, que iriam acomodar os medicamentos produzidos depois de colados os respetivos rótulos. Sobre o tampo de mármore do balcão, onde estava uma balança de precisão e duas balanças de Roberval, eram preparados todos os manipulados para medicina humana e veterinária: as fórmulas secas, como as hóstias, os papéis e as pílulas, bem como os xaropes, as soluções, as pomadas, os óvulos e os supositórios. Eram aqui também fabricados perfumes a partir de concentrados de essências que depois eram vendidos avulso às senhoras da terra em frasquinhos de quinze ou de vinte e cinco tostões. Nas vésperas dos dias de festa da aldeia o Sr. Cabrita afadigava-se a encher frasquinhos de perfume, frascos maiores com creolina, álcool ou água oxigenada, e pequenos envelopes de papel contendo 30 gramas de pó de talco, de pós “pós pés”, ácido bórico para reduzir o chulé, e de “pós pós tomates”, ácido benzoico para conservar a calda de tomate. Havia ainda as fórmulas secretas, como os “pós pós porcos” para prevenir a peste suína, os “xaropes para o catarral” e “soluções para higiene capilar” para eliminar piolhos.

Era sobre o tampo deste balcão que o Sr. Cabrita também fazia análises químicas para rastrear algumas doenças, como o teste de Fehling para a diabetes ou a quantificação da hemoglobina num hemómetro importado da Alemanha. Dispunha também de uma coleção de pesa-sais e pesa-espíritos que, para além do seu uso na determinação da densidade das soluções dos manipulados, dava uma boa ajuda aos produtores de medronho para ajuste do seu teor alcoólico.

Era também no Laboratório, por ser mais recolhido e haver maior privacidade, que o Sr. Cabrita prestava alguns cuidados de enfermagem aprendidos no Hospital Militar. Aqui eram feitos curativos a ferimentos, que depois de “limpos” e desinfetados com água oxigenada, eram “secos” com aplicações de pomada de óxido de zinco e cosidos com sedas de cavalo ou agrafados com os tradicionais “gatos”. Também aqui eram feitas zaragatoas para rastreio da difteria que eram enviadas para o Instituto Câmara Pestana, administrados injetáveis, lancetados “bechocos” (furúnculos) e até arrancados dentes.

Assim, a Farmácia Popular de Sabóia desempenhava as funções da assistência farmacêutica que, na época, eram a razão da existência da Farmácia Rural: a produção de medicamentos manipulados para medicina humana e veterinária; a dispensa das “especialidades farmacêuticas”; o aconselhamento sobre o uso de qualquer medicamento e sobre medidas de higiene e prevenção da doença; a assistência em situações de emergência, em colaboração com o médico ou com o enfermeiro ou na sua ausência.

A Farmácia Popular era também em Sabóia, como a generalidade das Farmácias Rurais, um centro de tertúlia, uma praça pública, onde se lia o jornal e se discutiam os acontecimentos da terra, do país e do mundo. A porta da Farmácia estava quase sempre aberta, mesmo à noite e ao domingo. Numa época, hoje difícil de imaginar, sem televisão nem internet, a Farmácia era um dos centros da vida da aldeia.

É o testemunho de uma farmácia do mundo rural de meados do século passado que aqui procuramos deixar, na expetativa de ter cumprido para com o povo de Sabóia o seu dever na prestação da assistência farmacêutica.